Comportamento

Hora de voltar cadeiras para a calçada

Por: Cecília Fazzini*

Cresci em meio a costumes de cidade pequena, sem grande burburinho, com aquele cheirinho de bolo de fubá e café, coroado pelo pôr do sol. Não havia pressa e o que distinguia os dias úteis dos finais de semana era a apoteótica, porém brevíssima, saída de fiéis ao final da missa aos domingos. Sem redes sociais, a comunicação era acionada por telefonista que, numa mesa com emaranhado de cabos, completava, com alguma demora e ruído, a chamada, porque o usuário dos serviços não tinha qualquer autonomia para tanto. Também se interagia com os vizinhos através do muro, para emprestar um punhado de sal ou conseguir porção de ervas cultivadas no quintal. Folhas ‘milagrosas’ destinadas ao preparo de chás que, segundo a crença propagada através de gerações, teriam o poder de eliminar a tosse ou amenizar as cólicas da menina-moça. Poucos tinham aparelho de TV em casa – ainda com imagem em preto e branco – e aqueles que já haviam possuído um abriam seus lares, para que os moradores dos arredores pudessem acompanhar o capítulo da novela ou assistir partidas de futebol. O mundo era ali, cabia no quarteirão do bairro, não havia a globalização, nem a massificação do jeito de viver, de se comportar e de consumir. Cada um ator da sua própria história. Ahh… e a grande rede social, dessa época não tão distante, eram as cadeiras na calçada. Não havia influenciadores e nem a ousada e insistente mania de formatar a opinião geral, circunspecta ao universo de futilidades. Também não havia a propagação, em larga escala, das fake news. Nesse autêntico templo da fofoca a céu aberto, era constante o diz que me disse sobre a vida alheia, no melhor estilo: onde há fumaça, há fogo. Os murmurinhos sobre a gravidez da filha do bem-sucedido funcionário público, donzela que preferiu entregar a virgindade ao vendedor porta a porta de enciclopédia, a levar adiante o curso da escola normal. Também a renda da festa da igreja, desviada pelo avarento tesoureiro da paróquia aos tropeços do político local. Assunto não faltava a ponto de ferver as rodas de conversa, que atravessavam o  entardecer,  sem se dar conta do escuro da noite. Era hora de recolher-se. As cadeiras ficavam à espreita, num canto da varanda, para serem arrastadas em nova e importante “missão”, a de reportar a vida da comunidade. Disfarçada de bate-papo informal, excluía-se a difamação desmedida, o vazio existencial e a solidão passava ao largo, sem assento concedido. Não sei se o nome disso é nostalgia ou saudosismo, mas, sem lamúrias, puxa uma cadeira e vem pra calçada também. Longe dos holofotes do mundo virtual, quem sabe você se informa, na fonte, sobre o rumo das coisas. Como disse o grande poeta Manoel de Barros, se inteira das miudezas, aquelas que dão real significado à existência.

“Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua. E o cachorro da casa era um grande personagem. E também o relógio da parede! Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo.” (Mário Quintana)

*Cecília Fazzini é jornalista e uma das editoras do Afinaidade. Nasceu e cresceu na cidade litorânea de Ilhabela (SP) e é neta e filha de caiçaras.