Por Francisco Ancona Lopez *
Talvez o maior desafio dos abastados passageiros da primeira classe dos clássicos transatlânticos, no século passado fosse planejar o conteúdo das malas e baús de viagem — a cada duas noites, uma era de gala. Não se considerava de bom tom repetir vestidos, e não era incomum ver desfilar estolas entre taças de champanhe nos coquetéis patrocinados pelo comandante. Fazer caber os sóbrios volumes nos camarotes dos deques superiores era outro problema: as travessias duravam, em média, 15 dias. Já os cavalheiros tinham a missão facilitada pela praticidade concedida pelos elegantes smokings, nas versões tradicional (pretos) e summer (brancos ou creme). Garçons percorriam discretamente as estações com bandejas de prata servindo finos canapés, enquanto um pianista europeu oriental interpretava standards do jazz no piano de cauda. Era doce viver no mar.

A vida passou a ter ritmo mais veloz em meados do século XX. Jatos intercontinentais aumentaram de tamanho (e de frequência) e aceleraram a míngua das viagens transatlânticas. Os anos 1980 assistiram à consolidação dos cruzeiros de turismo e lazer, nova vocação dos navios. No início, as unidades que serviam as travessias entre continentes foram aproveitadas para circuitos menores, nos quais passaram a priorizar portos e ilhas com apelo turístico, favorecendo os passeios e não mais o destino final. O foco das viagens mudava. Esse conceito dava sinais de força e começava a exigir mudanças na estrutura das embarcações — as famílias em férias embarcavam numerosas, com filhos em idade escolar. Era necessário criar condições de coexistência entre hóspedes de origem, perfil e, sobretudo, idades diferentes. Algo que anteriormente, no tempo das travessias, o estilo e as atividades a bordo impunham com rigores que então começavam a desmoronar. Torneios de carteado, salas de leitura, palestras culturais e aulas de artesanato já não bastavam para entreter as novas demandas. O dress code também mudava rapidamente: a informalidade dos trajes começava a tomar conta dos diminutos armários e gavetas das cabines. Salas de entretenimento infantil cresciam em tamanho e equipamentos, atraindo cada vez mais famílias a bordo. Novos tempos no horizonte.
Enquanto começavam a embarcar equipes maiores de monitores especializados em cuidar de crianças e adolescentes, os seniores — população sempre predominante a bordo — aos poucos iam alterando hábitos e preferências durante os cruzeiros. O fenômeno das viagens temáticas, que chegou com força à costa brasileira na década de 1990, os privilegiou concretamente. O primeiro a atender ao público grisalho foi o cruzeiro dançante, com artistas de renome das danças de salão como destaque, atrações musicais extras (orquestras e disc jockeys) e, principalmente, os tão necessários personal dancers, que atendiam às expectativas das damas desacompanhadas em busca de um cavalheiro para as seleções dançantes. Fenômeno entre os projetos especiais, o evento gerou “filhotes” que focaram ritmos específicos: temáticos de ritmos latinos, como salsa e tango, tiveram vida longa. Outros de nicho, como o forró e o zouk, também apresentaram suas versões. Atualmente, um minicruzeiro dedicado às danças a dois apresenta consistência — o “Conexões em Alto Mar”, dirigido pelo virtuoso Marcelo Grangeiro, diretor da “Dança dos Famosos” da TV e protagonista de inúmeros eventos marítimos em anos anteriores.
Outro filão encontrou espaço fértil ao sabor das ondas: o do bem-estar. A reboque do discurso da nova era representada pela virada do milênio, surgiram eventos como o cruzeiro Bem-Estar e Wellness Cruise (o nome mudava de acordo com a companhia marítima promotora). Aulas concorridas de ginástica de baixo impacto, palestras sobre nutrição e saúde e vivências lúdicas tornaram-se as atividades mais disputadas e fidelizavam milhares de cruzeiristas a cada ano. Inspiradoras viagens gourmet também atraíram milhares de hóspedes em busca de experiências sensoriais, comandadas por renomados e estrelados chefs de cozinha, apoiados pelas equipes de bordo. Os protagonistas, em geral celebridades com passagens por programas de TV, eram considerados estrelas das viagens e retribuíam com suas alquimias gastronômicas. Navegar no Brasil era cada vez mais saboroso.
A apoteose marítima para os longevos se configurou no início da década de 2010. Surgiram projetos desenhados especialmente para o público dessa faixa etária, como a demanda já exigia.

Um deles, o “Anos Dourados”, realizado por alguns anos em um navio de médio porte com destino a Buenos Aires, teve momentos marcantes, como palestras com o coreógrafo Cyro del Nero, o maestro Julio Medaglia, o escritor Ruy Castro (discorrendo sobre Bossa Nova, Carmen Miranda e o jogador Garrincha), a atriz Maria Lucia Dahl (falando sobre regras de etiqueta) e shows dos veteranos astros do samba-canção Ellen de Lima e Roberto Luna, entre outros. Um privilégio conviver de perto e aplaudir conteúdos de astros da cultura brasileira.

Já o cruzeiro “Sênior”, em navio de grande porte, teve edições com destino à Bahia, Buenos Aires e até rumo ao Mediterrâneo. Nele, brilharam figuras notáveis, como a eterna “Garota de Ipanema” Helô Pinheiro, na posição de madrinha e mestre de cerimônias. Sempre elegante e dotada de surpreendente energia, ela conduziu uma equipe que reuniu profissionais de alto nível, como as experts da atividade física para a terceira idade Rachel Mesquita e Maria Alice Corazza, que encantavam os hóspedes com aulas de ginástica na cadeira e danças recreativas. As intervenções de Marcelo Grangeiro e suas classes de forró e ritmos brasileiros eram concorridas e bem-humoradas. Carlos Miranda, o ator que interpretou o protagonista do seriado “Vigilante Rodoviário”, apresentou capítulos do programa e palestrou sobre sua trajetória peculiar na TV e posterior carreira policial (à qual aderiu depois da série). Ficaram marcadas as intervenções musicais do Duo Jobiniando (Hilda Maria — voz; Luciano Ruas — piano), em sets de bossa nova, chorinho e samba. Bailes animados pela famosa banda The Clevers.
Ponto alto: os vespertinos concursos “Garota Sênior”, com candidatas entre as hóspedes 60+, com direito a desfile, entrevistas, coreografias, shows com cantores consagrados da Jovem Guarda (como Lilian Knapp e Dick Danello) e premiações com faixas, coroas e arranjos florais. A emoção mais intensa, no entanto, vinha das aulas-balada conduzidas pela equipe “Divas Dance”: professoras jovens, lideradas pela idealizadora do programa, Roberta Marques — um misto de danças coreografadas e ginástica solta ao som de hits retrô 3 (Frenéticas, Rita Lee, Tim Maia, Roberto Carlos) — conduzindo as “meninas” 60+, 70+, 80+. A cena emblemática daqueles cruzeiros: a discoteca do navio apinhada de cabelos brancos, em catarse coletiva e performances corporais, numa empolgante liberação de endorfinas. Em plena terceira idade. Não é pouco — caia na gandaia, solte suas feras.
Está provado que a população madura cabe em qualquer navio de forma ativa e participativa.
Ultimamente, no Brasil, não constam projetos articulados para atendê-la como já ocorreu até alguns anos atrás. Seja qual for o motivo — decisão empresarial, pandemia, redirecionamento de marketing, mudança de foco —, com certeza cabe recurso!
*Francisco Ancona Lopez é autor do livro “Memórias Do Deck” (2025), editado pela Garoa Livros. Paulistano, formado em Comunicação (FAAP), atuou 40 anos em Marketing e cruzeiros marítimos, com 320 embarques em 25 navios por diversas regiões do mundo. Hoje é consultor em Marketing e Comunicação. Para adquirir o livro, acesse www.memoriasdodeck.com.br

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