Cultura

Ainda Estou Aqui – O Brasil no Oscar 2025

Por: Kelly Marciano*

Minha primeira colaboração ao Afinaidade. Havia muitas opções sobre o que escrever, mas, diante do momento histórico, a escolha era óbvia: ‘Ainda Estou Aqui”, o fenômeno do cinema que conquistou o mundo, dos festivais aos debates acalorados entre amigos. Tornou-se o primeiro longa brasileiro indicado ao Oscar na categoria principal e, com isso, ganhou lugar definitivo na história do nosso cinema.

O filme adapta o livro de Marcelo Rubens Paiva, que narra como sua família enfrentou o desaparecimento de seu pai, Rubens Paiva, sequestrado e morto pelo regime militar em 1971. O autor escreveu essa história enquanto via sua mãe, Eunice, perder a memória para o Alzheimer. O filme, portanto, se desenha sobre um duplo apagamento: o da memória individual e o da memória coletiva, esta última ainda insistindo em ser varrida para debaixo do tapete da história brasileira.

Fernanda Torres, aos 59 anos, prova mais uma vez porque é um dos grandes nomes do cinema nacional. Depois de uma carreira que passa por ‘Os Normais’, ‘Tapas e Beijos’, ‘Terra Estrangeira’ e ‘Eu Sei que Vou te Amar’, ela brilha intensamente nesse papel. Venceu o Globo de Ouro e chegou ao Oscar com uma performance de nuances impressionantes. Sua Eunice não precisa levantar a voz para nos lembrar da força de quem carrega uma história consigo.

Walter Salles, prestes a completar 70 anos, dirige com a precisão que só a experiência permite. Ele opta por filmar em película, escolha rara em tempos de cinema digital, mas que aqui faz todo o sentido. A textura da imagem, a granulação da película e as imperfeições naturais do formato tornam-se uma metáfora visual para a memória de Eunice – falha, fragmentada, mas profundamente humana. Como se cada detalhe da tela refletisse o esforço da protagonista em manter vivos os traços do passado.

Desde a cena de abertura, o filme estabelece sua atmosfera. Eunice nada no mar quando helicópteros militares aparecem no horizonte. O barulho ensurdecedor rompe qualquer sensação de segurança. A ditadura está sempre à espreita, seja nas praias, nas casas ou na história do país. A mensagem é clara: alguns traumas nunca desaparecem por completo.

O título ‘Ainda Estou Aqui’ é de uma força simbólica impressionante. Eunice afirma sua existência e resistência, mas também há uma camada inquietante na frase – um eco do passado que insiste em permanecer. O filme nos lembra que a luta pela memória é contínua, e cada cena reforça esse sentimento. Fernanda Torres conduz essa narrativa com um olhar carregado de significado, em que silêncios dizem tanto quanto palavras.

O impacto do filme é inegável. ‘Ainda Estou Aqui’ venceu o Urso de Ouro em Berlim, garantiu um Globo de Ouro para Fernanda Torres e agora chega ao Oscar com três indicações. Mas seu efeito vai além dos prêmios. Ele se junta a uma nova onda de cinema que discute a maturidade, a resiliência e o direito de existir plenamente, em qualquer idade. Nomes como Tilda Swinton, Isabella Rossellini e Demi Moore vêm mostrando que o tempo não precisa ser um obstáculo – e Fernanda Torres se coloca ao lado delas, reafirmando que talento não tem prazo de validade.

No fim, ‘Ainda Estou Aqui’ não é apenas um grande filme. É um lembrete de que certas histórias precisam ser contadas. De que a memória pode falhar, mas não deve ser apagada. Eunice ainda está aqui. Nós também.

*Kelly Marciano tem um olhar curioso sobre o mundo e uma trajetória diversa. Estudou administração de empresas, jornalismo e artes cênicas antes de se encontrar no cinema, quando ingressou na London Film School. Desde 1999, atua no mercado cultural como diretora, assistente de direção, roteirista e produtora executiva, trabalhando em videoclipes, curtas e longas-metragens, além de vídeos de arte e filmes publicitários. Pós-graduada em tradução, também traduz e legenda filmes e peças para festivais e mostras.

@kelmarciano