Personagem

O sonho de infância realizado ao ser comissária de bordo por mais de 40 anos

A menina sonhadora

Maria Luiza de Arruda Leme nasceu em São Paulo, em 8 de setembro de 1954. Filha de pai funcionário público e mãe dona de casa, que também foi secretária por anos em uma escola do bairro. Tem dois irmãos, um mais velho e outro mais novo e é solteira. “Quando pequena – conforme conta minha mãe – eu dizia que iria voar. Subia no monte de areia que havia no quintal da minha casa, que estava em obras, e descia de braços abertos dizendo que estava voando”. 

Tudo começou assim

Em um domingo do mês de maio de 1977, quando ela tinha 22 anos, no caminho da igreja para assistir à missa encontrou um amigo e foi informada por ele que a Transbrasil abrira inscrições para comissário de bordo. “Fiquei superagitada. Voltei para casa e fui procurar o jornal para ver o anúncio. No dia seguinte, logo pela manhã, meu pai me levou para os testes na empresa. Fiz as provas e passei em todas as fases”. Já aprovada, era hora de encarar o curso de três meses. Ela relembra que estudavam muito, o dia inteiro: sobrevivência na selva e no mar, primeiros socorros, peso e balanceamento. “Me arrepiava pensar que estava recebendo informações de como colocar um avião no ar e que, apesar de remota, essa possibilidade existia. Aprendemos a ler os bilhetes, combater o fogo, meteorologia, serviço de bordo, etiqueta, maquiagem e muitas outras coisas. A satisfação em estar realizando meu sonho me levava a estudar com afinco, sempre com apoio da família”. 

Já havia se preparado para quando surgisse a oportunidade. Fez diversos cursos: na Faculdade Ibero Americana, tradutor e intérprete de inglês e francês e, por gostar tanto deste idioma, também estudou na Aliança Francesa. Aprendeu alemão e japonês. Praticou atletismo, salto em altura, salto em extensão e arremesso de peso. Se formou em música, tornando-se professora de piano e ainda cursou fotografia, guia de turismo e operadora de mesa quântica estelar.

“Meus pais nos incentivavam, meus irmãos e eu, a fazer o que quiséssemos. A única recomendação era: seja o melhor, foi você que escolheu sua profissão”. 
Prazer em servir

Frio na barriga

Festa de formatura, missa, almoço, coquetel, entrega de certificado de conclusão do curso e a plaqueta com seu ‘nome de guerra’: ‘Malu’. “Imensa alegria se apoderou de mim. Minha nova vida iria começar. Mas, ao mesmo tempo, um frio na barriga, pois nunca havia entrado em um avião. Só os via quando ia à “praia”, como era chamado o terraço do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo”. 

Na Transbrasil, conforme relata, o aprendizado foi muito importante e sempre teve orgulho em vestir o uniforme da companhia. Aprendeu, também, que na aviação, as notícias correm na velocidade do avião, mesmo naquela época, sem celular e internet. Neste primeiro voo, ao passar por turbulência, deixou cair a bandeja de café. As xícaras eram de porcelana, não sobrou uma para contar história. Morta de vergonha e sem saber o que fazer ouviu, além da risada de toda a tripulação, a voz da supervisora lhe dizendo: “acontece!”

“Chegamos em São Paulo e, ao entrar no D.O. (despacho operacional) ouvi: “dando prejuízo para a empresa, hein!”. Fiquei estarrecida, todos já sabiam do ocorrido a bordo. As notícias, literalmente, tinham voado”. 

Pousar em pé?

Apesar do episódio das xícaras, o primeiro voo de Malu tinha transcorrido bem e já se sentia mais confiante, embora confesse que continuava nas nuvens. Saindo de Congonhas, tomou um taxi e foi pra casa. Seus pais, após a deixarem no aeroporto, foram ao supermercado. “Quando cheguei eles ainda não haviam retornado! Me dei conta do quão rápido é o avião. Eu tinha ido e voltado de Curitiba e eles ainda no mercado!”

Numa outra situação, ela e outros colegas pousaram em pé. Como isso foi possível? “Não deveria, mas aconteceu. Estávamos na galley (local onde são embarcadas e armazenadas a comida e as bebidas a serem servidas durante o voo) conversando e percebemos o início do procedimento de descida, preparamos o avião para o pouso. Anúncio aos passageiros, guardar todo o material e continuamos a conversa. E nada do avião pousar. De repente um dos colegas olha para fora para ver em qual altitude estávamos e grita: “Gente! Já pousamos!” Realmente o avião estava na pista. Não sentimos nenhum impacto, o pouso foi incrível e o comandante nem acionou o reverso. Ficamos todos boquiabertos e os passageiros aplaudiram entusiasmados!” 

Sorbone e PanAm

Entre as muitas oportunidades que surgiram em sua vida, duas não vingaram. Em um fretamento da Transbrasil com a Air France, um passageiro perguntou se gostaria de estudar francês na França. Com a resposta afirmativa, trocaram endereços e, depois de alguns dias, recebeu uma carta com informações do curso de francês na Sorbonne. “Pedi férias para ir à França fazer o curso e, para minha tristeza, a empresa negou. Fiquei muito frustrada, mas não podia simplesmente abandonar o emprego para ir embora”. 

Em outro fretamento, este com norte-americanos, foi indagada por um passageiro se queria voar na PanAm, lhe entregou a proposta e todos os pré-requisitos necessários. Apesar da empolgação, Malu não foi para não trocar o certo pelo duvidoso. Teria de ir à Miami por sua conta e risco e se manter lá, durante a fase de seleção. Se fosse aprovada, a PanAm faria o reembolso e assumiria as despesas durante o curso, caso contrário, o que restava era seguir sua vida. Não quis arriscar.

Nas asas da Varig

 “Continuei em busca do meu objetivo: voar Varig. Na época, era a única companhia brasileira que operava voos ao exterior. Passei dois anos descobrindo nosso País, mas a mente sempre esteve voltada para o mundo. Finalmente esse dia chegou: a Varig abriu inscrição para comissários.  Me candidatei e fui selecionada para fazer as provas. Aprovada, chegou a hora de mudar de casa, ou, de “asas”. O primeiro voo foi no famoso Electra, um charme só, com aquele famoso lounge ao fundo e todo serviço feito com louça, talheres de inox e copos de vidro”.

Ao ser transferida para voos internacionais, mais emoção no dia 4 de junho de 1981, rumo ao México, em um B707. Após algum tempo, se candidatou para trabalhar na 1ª classe. “Assumi o posto e, depois, promovida à supervisora dessa classe. Novos testes, entrevistas e cursos. Continuei voando pelo mundo e sempre conhecendo restaurantes, igrejas, museus, teatros etc.”. 

Mais oportunidades surgiram e a levaram a morar em destinos onde a Varig tinha base, entre eles, Hong Kong e Los Angeles.

 A vida continua

Quando a Varig fechou as portas, em 2006, Malu foi demitida. “Muito dolorido pegar os uniformes, colocar numa mala e devolver. Um pedaço de mim foi junto. Sinto orgulho em ter feito parte dessa história.  Mas a vida continua, cabeça erguida, começar de novo!”

Enviou currículo para algumas companhias aéreas. As nacionais não deram retorno, as estrangeiras elogiavam sua trajetória, lamentavam o fechamento da Varig, mas informavam que ela estava acima do limite de idade para contratação. Finalmente a TAM a chamou, em 2007 e, por 13 anos, atuou na companhia cuja característica era trabalhar com jovens. “Eu tinha de voo mais tempo que muitos deles tinham de vida. Cheguei a ser chamada várias vezes na cabine para confirmar minha matrícula ANAC, achavam que estava errada e eu confirmava: é essa mesmo, comecei a voar em 1977”.

Quando teve início o processo de fusão da LAN com a TAM Malu passa a exercer a função de instrutora para comissários que estavam iniciando na carreira. “Minha responsabilidade era fazer com que eles sentissem o amor verdadeiro pela profissão e o comprometimento com a empresa, com os clientes e consigo mesmo. Mais uma experiência incrível”. 

“Meu último voo não foi a bordo de um avião, foi a bordo do coração de cada um daqueles amigos que lá estavam e dos que não puderam estar, por estarem voando”

 “Costumo dizer para quem quer ser comissário: a aviação é muito rápida. Temos a oportunidade de estar em lugares que as pessoas economizam a vida inteira para ir uma única vez, por isso devemos aproveitar. A aviação nos proporciona uma vivência incrível!”

Na festa de despedida, homenagem, flores, champanhe, discurso e a placa comemorativa. “A emoção tomou conta de todos. Meu último voo não foi a bordo de um avião, foi a bordo do coração de cada um daqueles amigos que lá estavam e dos que não puderam estar, por estarem voando. Sempre terei histórias para contar e lembrar os bons e os não tão bons momentos. Hoje corro o risco de tropeçar, pois cada vez que ouço o ruído que vem do céu, meus olhos se voltam em busca do pássaro prateado!”

@marilusp

fb @marialuiza.leme.12

Fotos: acervo pessoal

11 comentários

  1. Lobue diz:

    Parabens pela carreira e todo seu esforço e conquistas realizadas.
    Grande beijo

  2. Cristina Ramalho diz:

    Tive o prazer de conhecer Maria Luiza, uma profissional consciente, dedicada e uma raridade de encontrar. Trabalhava no vôo com um sorriso no rosto, porque sabia e se dedicava ao que fazia. Indiscutivelmente uma das melhores comissárias que conheci. Já viajei muito e por várias companhias aéreas por muitos países. Parabéns.

    1. Obrigada pelas suas palavras, sempre amei que fazia, e sempre o fiz com muito amor

  3. Thais diz:

    Que felicidade a minha em ter feito parte de sua trajetória!
    Fomos contratadas juntas na TAM e quanta experiência você nos passou!!! Você é maravilhosa Malu!!!
    Um privilégio ter sido parte de tripulação!

    1. Thais, obrigada pelo seu carinho, a vida é uma eterna troca de experiências!!!

  4. Cristina Cavalcanti diz:

    Querida Malu ! Fiquei emocionada ! Sei que foi uma luta , mas vc faz parte dos vencedores , c toda a certeza ! Que Deus na sua infinita bondade te abençoe e derrame graças sobre vc !
    Que as coisas boas te encontrem , te abracem e te abriguem para sempre ! Te amo 😘

    1. Cris , obrigada pelo sua amizade e carinho e por suas palavras

  5. Caroline Guerra diz:

    Ninguém melhor do que você, Malu, pra descrever com precisão a nossa profissão!! Parabéns!! Você é um exemplo pra todos nós!!

    1. Muito obrigada dd coração por suas palavras,

  6. Cleide Cordeiro diz:

    Admirável, simplesmente! Sou sua fã ❤️

  7. Sandra Christina Silveira lobo diz:

    Malu amiga querida, isso precisa virar um livro e depois filme hahahaha. Passando filminho aqui na minha cabeça, do capítulo Los Angeles e Hong Kong. Bj, você é nosso orgulho!

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