Comportamento

A lancha do véio

Por: Mário Viana*

Fato real ocorrido há alguns dias no aniversário do Pedro, num boteco muito legal do Maracanã, o bairro. Estava num papo animado com a Lelê quando o menino de uns 12 anos se aproximou oferecendo balas (o doce mesmo). Não aceitamos, mas ele não se deu por vencido. Resolveu mostrar que era bom em improvisar rimas. Desatou a elogiar o charme da minha amiga. Até aí, tudo bem, era verdade. Ele se animou, apontou na minha direção e mandou o míssil. “A moça é tão bonita que trouxe até o véio da lancha”. O véio da lancha era eu.

Minha reação, entre a piada e a ofensa, foi rir e xingar, dentro da faixa etária permitida pelo poeta. A boa notícia foi a justificativa dele: “O senhor já tem uns 45 anos, não é possível que não tenha uma lancha”. Diante de algarismo tão favorável, não contestei. Em nome da verdade parcial, disse apenas que não tinha lancha. O menino seguiu em frente e a noite prosseguiu. Mas o selo de “véio da lancha” grudou.

Envelhecer – o verbo é esse, não nos enganemos – está longe de ser um processo automático. Para ficar velho não basta se afastar cada vez mais do ano de nascimento. A maturidade (outro nome elegante pro fenômeno) tem seus mistérios. Um deles está dentro de nós: o hábito. Não é fácil se acostumar ao tratamento de senhor, senhora, e outros do mesmo naipe. Em nossa imagem diária no espelho ainda enxergamos o rosto espinhudo da adolescência.

A primeira vez que oferecem assento preferencial no metrô ou no ônibus chega a ser ofensiva. “O senhor quer sentar? – Não!” Mas o orgulho é fugaz. De repente, você se vê tirando o jovem do assento destinado aos idosos sem a menor dor na consciência. Já recebi até sinal de positivo de passageiros mais tímidos. “Mandou bem, coroa!”, eles dizem com o gesto.

Também aos poucos você vislumbra as vantagens de ter nascido na metade do século passado. A meia entrada, por exemplo. Duvido que algum 60+ rejeite o benefício. Você até deixa de se magoar quando a bilheteira do cinema fornece o desconto sem nem pedir o documento. Sim, já dá pra notar numa rápida olhada. A autoimagem te enganou.

A fila preferencial no aeroporto é outra maravilha. Se bem que tem tanto maior de 60 viajando que agora a preferência preferencial é pelos maiores de 80. É animador de verdade saber que as próximas décadas não obrigam ninguém a ficar salivando no babador, largado na sala ou esquecido no jardim. Ser assediado chega a ser uma surpresa boa e você finge não ouvir um “adoro um coroa”.

O transporte público gratuito – em São Paulo, para maiores de 60; no resto do Brasil para maiores de 65 – é um misto de benefício e direito. Foram muitas horas de ônibus lotado nesta vida, pensa bem. Entrar de graça em museu é outra benesse merecidíssima. Não dispenso, não. Agora, ser chamado de véio da lancha é bizarro. Mas, como tudo na vida, a gente se habitua. E já olha a Marina da Glória de outro jeito. Os barquinhos até parecem nos acenar de longe, tentadores…

*Mário Viana é jornalista, dramaturgo, roteirista e cronista paulistano. Desde 2018, publica crônicas inéditas em seu blog Vianices sobre comportamento, cultura e viagens. Autor de cerca de 30 peças teatrais e, em TV foi colaborador de diversas novelas. Destaque para ‘Vai na Fé’, 2023, escrita com Rosane Swartman e premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e pela Associação Brasileira de Roteiristas (ABRA).

https://vianices.wordpress.com

@marioviana