Personagem

De maratonistas a peregrinos

Se o caminho é um processo que se constrói a cada passo, pegada por pegada, tal como as formigas quando carregam as folhas para dentro do ninho do formigueiro, assim o casal Maria Beatris Gomes Souto e Mário Tadeu Silveira Souto encontrou o seu.

Informação e detalhes antes da viagem

Após os 60 anos, já passadas duas décadas como maratonistas os dois, paulistanos de nascimento, 47 anos de casados, partiram para outro roteiro que permitiu a ambos, fazer a autodescoberta: o Caminho de Santiago de Compostela. Trilhar os passos do apóstolo e chegar, por três diferentes vezes, à catedral da cidade espanhola da região da Galícia foi mais do que viajar de uma forma inusitada. A experiência virou lição de vida, símbolo de transformação e relevante para tomar de decisões.

Beatris recorda que dos 40 aos 60 anos, fez parceria constante com o marido em maratonas, meias-maratonas e chegaram a correr a São Silvestre – Mário 10 vezes, das quais 5 em companhia da mulher. Na faixa dos “entas”, com duas filhas já encaminhadas, cursou faculdade de terapia ocupacional.

Mário chegou a correr a maratona de Nova York, em 2001 e Beatris, na ocasião, fez o papel de simples fotógrafa do companheiro. Mas o entusiasmo contagiava os dois, e ela começou a se preparar quando, em 2007, embarcou para a sua primeira competição na Big Apple, seguindo os passos do marido. Depois vieram outras maratonas na Alemanha, França e Portugal, além de diversas meia-maratonas. “Aprendemos a conciliar a atividade da corrida com o turismo, conhecer novos lugares”, explica. Em 2015, ao completar 60 anos e com Mário tendo apresentado um pequeno problema no coração, a decisão veio unânime: migrar da corrida para a caminhada.

Beatris, em momento de reflexão

No caminho francês

Em 2016, com Mário à frente da impecável organização da viagem, partiram para o primeiro percurso rumo à Santigado de Compostela, pelo ‘Caminho Francês”. Um percurso de aproximados 800 quilômetros com partida de Saint Jean Pied de Port e passagem pelos Pirineus, cumprindo 28 quilômetros num dia. A chegada seria à Roncesvales, localidade espanhola incluída no percurso de Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho, relatada no clássico de Miguel de Cervantes, com praticamente toda a trilha pela frente que seria percorrida em 31 dias.

Nem tudo eram flores, mas Beatris conta que lições foram aprendidas. Mochila pesada sobre as costas, trocas de roupa para lavar, meias ainda úmidas para carregar e itens e mais itens para o uso diário compondo a bagagem. “Reclamei muito o tempo todo”, reconhece. Para tentar evitar bolhas nos pés, ela recomenda calçados dois números acima.

Mas o esforço seria recompensado. Eles admitem o poder transformador desse tipo de viagem, que amplia a reflexão pessoal. Mário, que trabalhava desde os 14 anos, numa longa e estressante rotina, sem tempo para dedicar à família e ao lazer, foi exatamente ao caminhar nessa rota, que decidiu se aposentar. E assim foi feito.  Para Beatriz, “como Deus atua nesses momentos, meu marido não se desligou totalmente da empresa na qual hoje atua como consultor financeiro em regime de home office”. Segundo ele, o caminho não é de penitência e nem religioso e sim, uma oportunidade para o autoconhecimento.

Outro momento de atenção aos sinais. Um mal-estar de ordem alimentar levou Beatris a necessitar de cuidados médicos. Ambos tiveram que permanecer numa pousada familiar, com quarto e banheiro coletivo, que pertencia à uma senhora portuguesa. Na pequena localidade o atendimento no posto de saúde era uma vez por semana. Quando foram ao consultório qual não foi a surpresa ao encontrarem uma médica brasileira que ofereceu o medicamento necessário.

E se o convite para mudar o olhar está presente em cada passo do Caminho de Santiago, Beatris relembra que, ainda contrariada pelo desconforto da mochila e cansada, num lugar denominado Morro do Perdão, viu o mau humor desaparecer quando se deparou com um grupo de peregrinos cegos, acompanhados de cães-guia. “Meu marido só olhou para mim e não disse uma palavra, seguimos em frente na nossa missão”.

A emocionante chegada do casal à Catedral

‘Primitivo’, percurso de novos desafios

A partir do norte da Espanha e 15 dias pela frente para vencer outros 300 quilômetros, assim foi a segunda experiência de Beatris e Mário, em 2019, no denominado Caminho Primitivo. Seguiram acompanhados por mais três casais de amigos. “Um formato novo no modo de viajar”, observa Beatris, porque inclui pernoites em albergues – tipo de acomodação quase que única, ainda não utilizada quando no caminho francês – alguns com a alta ocupação. Com trecho de caminhada de 20 quilômetros/dia, sem colocar o pé na trilha durante a noite, por questões de segurança e cautela, avançavam no objetivo traçado.

Viajar em grupo implica em conciliar interesses. Assim, além do desafio que o próprio caminho impunha, ainda necessitaram encarar as decisões tomadas em conjunto. A disciplina de acordar cedo, tomar a primeira refeição e dar a largada para mais um trecho da viagem a pé em companhia de outros peregrinos requer empenho, poder de escolha, respeito mútuo e também momentos de silêncio e reclusão, princípios que ambos identificam na filosofia da caminhada. “O tempo todo do percurso cruzamos com pessoas de nacionalidades diversas que nos saudavam com ‘Buen Camino’ e, durante a única refeição completa do dia, sempre às 19 horas, ocorria o momento de compartilhar. A gente faz amizade que não tem nome, não tem raça, não tem cor,” comenta Beatris.

‘Central’, rota a partir de Portugal

Entre agosto e setembro de 2022, a dupla partiu da cidade do Porto pelo Caminho Central, que atravessa a fronteira de Portugal com a Espanha, por 300 quilômetros, durante 20 dias. Depois de chegar à Catedral foram ao marco zero, em Finisterra. Ao percorrer localidades dos dois países, Beatris relata as experiências gastronômicas de cada canto que são atrativo dessa opção do Caminho. De qualquer maneira, recomenda critério com a alimentação, selecionar sempre uma comida recém-preparada, capaz de repor energia. Tanto ela quanto Mário discordam de que devem seguir regras extremas como fazer qualquer tipo de sacrifício, para obter carimbo no passaporte do peregrino. No Central, havia 30 quilômetros pela frente até a próxima hospedagem. Caminharam 20 e pediram um táxi, a fim de cumprirem o percurso do dia.

Nas três experiências, o momento da chegada à Catedral de Santiago de Compostela é para o casal uma conquista individual, cercada por inexplicável atmosfera de paz. Beatris assinala, ainda que, até sentiu um vazio “porque no dia seguinte não haveria mais o caminho a ser vencido”. Concordam com a sensação de objetivo alcançado e o clima de congraçamento entre os peregrinos.

Para o futuro, ainda sem data definida, planejam fazer outro percurso na Europa, o trajeto Suíça – Roma, da Via Francigena – o mais antigo caminho de peregrinação que atravessa cinco nações: Inglaterra, França, Suíça, Itália, com chegada ao Vaticano, que no total soma mais de 3.000 quilômetros. Outro percurso no radar dos dois caminhantes é o Monte Fugi.

Fotos: acervo pessoal

santiago.org.br

caminodesantiago.gal/pt

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *