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Com linha e agulha se tece o essencial, que é invisível aos olhos

Pode parecer liberdade poética, mas o projeto Bordado Mágico, que reúne um conjunto de mulheres, na cidade do Rio de Janeiro, consegue ser encarado como uma espécie de confraria. Entre linhas e agulhas, cada uma compõe sobre o tecido, ponto a ponto, algo que brota do seu interior. O essencial, que é invisível aos olhos – de acordo com o que escreveu o aviador francês Antoine de Saint-Exupéry no clássico da literatura “O Pequeno Príncipe” – ganha forma, cor e contexto. Vira meio de expressão carregado de detalhes e sentimento, numa bela e reveladora trama individual. Da espiral da vida, uma das práticas propostas, surgem nuances muito peculiares das experiências desde a infância.

A ideia nasceu de um insight da catarinense de Rio do Sul, hoje carioca de carteirinha, Dolores Schroeder que, para o grupo, é a Dola. Depois de estafante vida profissional dedicada ao mercado financeiro, ela, hoje com 60 anos, há duas décadas buscou a formação como psicoterapeuta. Viu acordar em si mesma o interesse latente sobre o campo do comportamento humano, “que dialogava com a minha alma”, afirma, quando constatou que havia adiado a escolha, por circunstâncias econômicas e familiares, desde os seus14 anos.

“Mas foi a leitura do meu mapa astral o divisor de águas, uma bússola”, considera Dola, porque acelerou o autoconhecimento e orientou o trabalho com o feminino, com histórias. O bordado surgiu como um norteador em 2008/2009. E declara que, à época, ela própria não dominava, nem minimamente, a técnica. Em 2011 já haviam grupos formados de bordadeiras, das quais igualmente não se exigia qualquer desenvoltura com os pontos.

Lela Camargo / espiral

Bordado Mágico, bordando a vida enquanto
a vida me borda (slogan do projeto)

E como nasce a espiral da vida?

Inicialmente de um simples risco que lembra um caracol, que é com o que as mulheres – reunidas em grupos de 5 a 6 bordadeiras – confeccionam num tecido as etapas da vida: infância, adolescência, juventude, atualidade e maturidade. O entorno desse traçado é complementado com o campo dos sonhos, ou seja, a vida concreta, circundada pelo imaginário. Antes das mulheres colocarem a mão na “massa”, há uma sensibilização meditativa e, a partir dessa vivência, cada uma desenha sobre o pano e confecciona imagens, paisagens etc. “Se transforma em tempo de conexão e de olhar para dentro”, acentua Dola. “Eu vejo no Bordado Mágico a transformação, via a materialização da vivência, e um convite claro à criatividade e a vínculos afetivos estimulados pelas partilhas. É um lugar de pertencimento e de busca do divino, na conexão efetiva com a espiritualidade”. As turmas são compostas por mulheres predominantemente na faixa dos 50+, embora também atraia aquelas de 35/40 anos.

Além da espiral, ao longo do tempo as experiências com agulha e linha se multiplicaram em grupos para meninas, a alguns pontuais como ‘bordando a primavera’, o ‘lenço dos namorados’, entre outros. E reuniões de leituras, arte terapia e iniciativas para o mesmo fim: o despertar

Bettina Beer / espiral

Elo afetivo com a costura

A professora universitária aposentada Lela Camargo guarda, no baú de recordações, a intimidade mantida com tecidos e linhas. Aos 68 anos, filha de costureira e apesar de pertencer à uma família de mulheres habilidosas com as artes culinária, da costura e bordado, ela foi desestimulada, desde pequena pela mãe, a lidar com o ofício similar ao seu, porque tinha planos de conduzir a pequena menina à evolução escolar. “Talvez isso até explique eu ter enveredado para o campo da histologia, o estudo dos tecidos vivos humanos ou não humanos”, avalia. Depois de um período sabático de três anos, que se seguiu à aposentadoria, ela sentiu aumentada a necessidade de fazer alguma coisa que envolvesse as mãos. “E lá no fundo, eu sabia que tinha um arquivo com os tecidos bordados e, por outro lado, também uma voz interna que decretava: eu não sei fazer”.

O primeiro encontro com a Dola, há cerca de 10 anos, foi casual, no jardim do Museu da República, no Rio. “Vi uma mulher debaixo de uma árvore bordando, junto a duas outras. Me aproximei e comecei a ouvir as histórias”. E o resgate afetivo aconteceu quando Lela notou que a proposta casava com aquilo guardado no canto da memória, ou seja, mulheres em grupo e tecidos. “Mas o que me cativou ainda mais para o projeto foi a Dola, a nossa mestra, ter dito: começa e aqui não tem regra nenhuma, nada de perfeccionismo, desde o começo nada era cobrado”. Somado ao estímulo, “errou? Cria encima”. Lela ressalta que além de agregador e capaz de sociabilizar, o Bordado Mágico atua como se juntasse o que estava numa gaveta desorganizada, mesmo que no início só seja possível ver parte deste compartimento.

E quanto ao aspecto de relacionar o ato de bordar sempre apenas à mulher idosa, ela lembra que conhece jovens usando o bordado como forma de trabalho atualmente.

De sua parte, até mesmo como maneira de honrar a ancestralidade, o bordado permanece no seu papel, a ponto da professora já ter apresentado a técnica livre de manusear linha e agulha (essa, de plástico) para a neta de 5 anos.

Um portal que se abriu

“Ingressar no projeto da espiral da vida com este tipo de trabalho com as mãos foi como um portal que se abriu, no sentido de entrar na intimidade da partilha, vivência, autoconhecimento e cuidado com o feminino”, frisa Bettina Beer, 58 anos e administradora. Sem economizar nos predicados, relaciona o que está implícito no trabalho da Dolores: espaço de troca e consciência profunda sobre o universo da mulher, através da arte, grupos de estudos e bordados. “Um lugar seguro e acolhedor, onde questões, conteúdos e práticas nos ajudam a mergulhar em nós mesmos”.

Bettina conta que o primeiro encontro com as obras da Dola foi no emprego de dinâmicas e cenografia. “Como bordei muito quando era criança e adolescente, por estudar em escola que tinha essa atividade no currículo escolar, o projeto da espiral imediatamente foi convocatório. Permitia que eu retornasse a um lugar saudoso e esquecido por mim”. Entusiasta do Bordado Mágico, baseada na própria jornada, volta a destacar a medida criativa e inovadora como Dola trabalha temas tão profundos e necessários. “Aprendi muito e ainda aprendo, sobre mitos, arquétipos, estórias, psicologia do feminino, arteterapia e bordado nos encontros”. Mas o melhor, na opinião da aluna, é o ambiente de troca profunda, sensível, alegre do qual participa, ao longo de mais de uma década nessa jornada coletiva.

“O que a gente tem que aprender é, a cada instante, afinar-se como uma linhazinha para saber passar no furo de agulha que cada momento exige” (João Guimarães Rosa)

Ângela Renner, Gerlane Passos, Maria Isabel Costa, Maria Cristina Costa e Mônica Farias

@psi.dolores_schroeder

@atelie_das_fiandeiras

Fotos: acervo pessoal e Cristina Brochieri

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